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terça-feira, 12 de agosto de 2014

Então, é o seguinte


Eu nunca sei como começar um texto. Em alguns eu nem começo. Eu fico encarando a folha em branco até pensar mais na minha incapacidade do que no texto em si. Às vezes eu sei o que quero falar, mas não sei chegar até lá. Eu não posso simplesmente abrir uma folha e escrever “então, é o seguinte”. Tem que ser bonito, tem que ser interessante. Tem que ser coeso. Tem que ter todas as quarenta e sete estruturas de todos os vinte e cinco tipos textuais que a gente estuda no ensino médio. É tipo um trailer de filme. Tem o trailer ruim, que quando termina você não tem a menor vontade de ver o filme. Tem o trailer precoce, que quando termina você já sabe tudo que acontece. E tem o trailer bom. De qualidade. E no fim desse, você se interessa pelo filme. E a cada texto que eu resolvo abrir, sem saber se vou fechar, eu passeio por esses três. Uma abertura boa, fraca ou incompetente. Geralmente fica sendo abertura nenhuma.

Eu estudei em um colégio evangélico. Presbiteriano. E lá tínhamos um intervalinho de uns vinte minutos todos os dias, para as devocionais. Embora o colégio fosse protestante, muitos dos meus colegas eram católicos. Então, com o tempo, desenvolveu-se um consenso de manter as mensagens bíblicas de uma forma apenas moral, sem defender religião tal ou qual. Havia alunos que participavam da organização dessas devocionais, preparando o que falar, ajudando professores, entra outras coisas relacionadas. E eu lembro que tinha uma menina que me matava de raiva. Ela era relativamente bem relacionada com a coordenação de ensino religioso do colégio, e acabou virando a chefona das devocionais. Mas o que me irritava não era a sua arrogância por ter “poder”. Era a sua incapacidade de falar. Todas as vezes em que ela ia à frente da turma, era um emaranhado de entãos e aís que desnorteavam qualquer um. “Então, aí... então Moisés foi falar com o Faraó, e aí, quando ele chegou lá, aí, então ele falou...” e seguia assim por vinte minutos. E ela achava ruim quando nós não prestávamos atenção. Mas lhe faltava uma linguagem que chamasse a atenção do seu público, por mais mirim que este fosse. Faltava-lhe uma introdução decente. Sempre que escrevo me lembro dessa menina, e fico com medo de me perder e dar voltas e voltas recheadas de onomatopeias.

Meu pai é um cara meio calado. Quando vejo aquelas piadas que dizem que uma mulher diz quatro mil palavras por dia e que o homem diz mil, sempre penso que se isso for verdade, meu pai possui um crédito de palavras praticamente imensurável. Alguns momentos perto dele são apenas de silêncio. Silêncio compartilhado. Eu sei que ele está lá e ele sabe que eu estou também. Podemos habitar o mesmo cômodo por horas assim. Não que ele não converse. É apenas uma pessoa que se reserva o direito de economizar saliva quando pode. Porém, ocasionalmente, nesses momentos de silêncio compartilhado, ele dispara uma pergunta ou outra. Puxa um assunto. Às vezes vinga, às vezes não. Pai também é humano. Chegamos então no fim de semana passado. Ele em um canto da mesa, eu em pé apoiado na parede, comendo gelatina de limão. Despreocupado, com os pensamentos alados. Ele me fuzila com a pergunta que qualquer pessoa que já passou por uma entrevista de emprego já respondeu, ou já disse pra si mesmo que respondeu. Ninguém sabe a resposta. “Onde você se vê em cinco anos?”. E em dois segundos eu pensei em tudo. Pensei na minha vó que vivia falando que explodiria de orgulho ao me ver formando. Pensei nessa mesma vó que aqui já não está mais. Pensei nos amigos do jardim de infância. E quando estes se foram, pensei nos do primeiro fundamental. E quando foram estes a se afastaram, pensei nos da sétima série, que eventualmente desapareceram também. Pensei nos amigos do ensino médio, então. Na falta de contato com todos. Cheguei com o pensamento aos amigos da faculdade. E soube que esses não serão para sempre, como nenhum dos outros que achei que seriam foram. Pensei que há cinco anos eu estava no primeiro ano do ensino médio, querendo fazer medicina e indignado por pesar somente sessenta quilos. Pensei então que hoje curso o sexto período de direito e peso quase cem quilos. Cinco anos atrás eu tinha quinze e hoje tenho vinte. Meu irmão fazia jornalismo e hoje faz história. Meu pai trabalhava em um estado e foi transferido pra outro pra depois ser transferido pro mesmo novamente para então ir para outro para agora voltar ao estado em que estava no começo. Tudo isso, muito mais, em uma colherada de gelatina. Segundos para pensar em uma resposta. Soltei um “vish” baixinho. Meu pai me conhece. Esse vish, traduzido direto do Joãomachadês significa “rapaz, sei lá”. Mas eu quis ir além do sei lá. Encarei a gelatina. Encarei meu pai. A gelatina de novo. Fiz as contas, em cinco anos provavelmente estarei formado. Mas isso é praticamente matemática. Um semestre atrás do outro, um dia acaba. Mas que garantia eu tenho que formarei? Que garantia tenho que acordarei amanhã? Minha avó ficou doente e morreu em três meses. Meu avô morreu em um acidente de carro. Uma menina que estudou comigo em 2008 teve um ataque cardíaco e morreu. Perdi um colega de ensino médio para o câncer. Um amigo de faculdade para a violência urbana. O que me garante que continuarão sendo os outros a morrerem e não eu? Eu posso ter um emprego em cinco anos. Ou não. Posso estar de boa, casado, com dois filhos, num apartamento na periferia. Ou posso estar ainda com meus pais sendo tão inútil quanto me sinto ser atualmente.

Minha mente disparou em segundos. Pensaria em toda a minha vida antes da gelatina tremer. Falei então, minha resposta. Disse que não sei. Apenas. Ele não pareceu satisfeito, mas penso que entendeu. Mas eu não sei. Não tenho como saber. Viver é sorte. Sair de casa em um carro todos os dias. Estacionar em um setor movimentado. Voltar da faculdade em ruas desertas. Viver em uma cidade cujo número de homicídios dispara na casa das dezenas por mês. Sonhar com um emprego, quando já não é tão simples achar um estágio. Eu posso ter metas. Querer isso ou aquilo. E só. Nada além disso. Por maior que sejam as minhas motivações e os meus esforços, a minha vida não depende só de mim. E essa pergunta, repentina, entre silêncio e gelatina, me assustou. Me caiu a ficha, como dizem. Tenho pensado nisso o dia todo. Vários dias já. Minha vida depende de inúmeros fatores que não cabem a mim. Meu resultado nesse mundo será apenas a soma na qual sou só um dos termos.

Não sei onde estarei. Mas sei onde gostaria de estar. Não sei como chegar, assim como a menina que sabia o que dizer, mas se perdia nas travas da oratória. Quero o que todo mundo quer. Um salário legal, viagens, família, prazer na vida. Felicidade. Talvez em cinco anos. Talvez nunca.

Não sei começar texto e não sei terminar. É o bater da porta na cara, ou o descer suave das cortinas. É ser feliz em tantos anos, ou olhar para trás e se arrepender. Buscando sempre a satisfação.
Já ouvimos esta estória

Sabemos como acaba

Acontece quase tudo
Não muda quase nada
Já vimos este filme
Sabemos como acaba
Explodem quase tudo
Não sobra quase nada
Sair no meio da sessão
Pra ver
A cidade em chamas”


Então, só resta uma solução
Sair no meio da sessãoPra verA cidade em chamas”



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