Eu nunca sei como começar um texto. Em alguns eu nem começo.
Eu fico encarando a folha em branco até pensar mais na minha incapacidade do
que no texto em si. Às vezes eu sei o que quero falar, mas não sei chegar até
lá. Eu não posso simplesmente abrir uma folha e escrever “então, é o seguinte”.
Tem que ser bonito, tem que ser interessante. Tem que ser coeso. Tem que ter
todas as quarenta e sete estruturas de todos os vinte e cinco tipos textuais
que a gente estuda no ensino médio. É tipo um trailer de filme. Tem o trailer
ruim, que quando termina você não tem a menor vontade de ver o filme. Tem o
trailer precoce, que quando termina você já sabe tudo que acontece. E tem o
trailer bom. De qualidade. E no fim desse, você se interessa pelo filme. E a
cada texto que eu resolvo abrir, sem saber se vou fechar, eu passeio por esses
três. Uma abertura boa, fraca ou incompetente. Geralmente fica sendo abertura
nenhuma.
Eu estudei em um colégio evangélico. Presbiteriano. E lá
tínhamos um intervalinho de uns vinte minutos todos os dias, para as
devocionais. Embora o colégio fosse protestante, muitos dos meus colegas eram
católicos. Então, com o tempo, desenvolveu-se um consenso de manter as
mensagens bíblicas de uma forma apenas moral, sem defender religião tal ou
qual. Havia alunos que participavam da organização dessas devocionais,
preparando o que falar, ajudando professores, entra outras coisas relacionadas.
E eu lembro que tinha uma menina que me matava de raiva. Ela era relativamente bem
relacionada com a coordenação de ensino religioso do colégio, e acabou virando
a chefona das devocionais. Mas o que me irritava não era a sua arrogância por
ter “poder”. Era a sua incapacidade de falar. Todas as vezes em que ela ia à
frente da turma, era um emaranhado de entãos e aís que desnorteavam qualquer
um. “Então, aí... então Moisés foi falar com o Faraó, e aí, quando ele chegou
lá, aí, então ele falou...” e seguia assim por vinte minutos. E ela achava ruim
quando nós não prestávamos atenção. Mas lhe faltava uma linguagem que chamasse
a atenção do seu público, por mais mirim que este fosse. Faltava-lhe uma
introdução decente. Sempre que escrevo me lembro dessa menina, e fico com medo
de me perder e dar voltas e voltas recheadas de onomatopeias.
Meu pai é um cara meio calado. Quando vejo aquelas piadas
que dizem que uma mulher diz quatro mil palavras por dia e que o homem diz mil,
sempre penso que se isso for verdade, meu pai possui um crédito de palavras praticamente
imensurável. Alguns momentos perto dele são apenas de silêncio. Silêncio
compartilhado. Eu sei que ele está lá e ele sabe que eu estou também. Podemos
habitar o mesmo cômodo por horas assim. Não que ele não converse. É apenas uma
pessoa que se reserva o direito de economizar saliva quando pode. Porém,
ocasionalmente, nesses momentos de silêncio compartilhado, ele dispara uma
pergunta ou outra. Puxa um assunto. Às vezes vinga, às vezes não. Pai também é
humano. Chegamos então no fim de semana passado. Ele em um canto da mesa, eu em
pé apoiado na parede, comendo gelatina de limão. Despreocupado, com os pensamentos
alados. Ele me fuzila com a pergunta que qualquer pessoa que já passou por uma
entrevista de emprego já respondeu, ou já disse pra si mesmo que respondeu.
Ninguém sabe a resposta. “Onde você se vê em cinco anos?”. E em dois segundos
eu pensei em tudo. Pensei na minha vó que vivia falando que explodiria de
orgulho ao me ver formando. Pensei nessa mesma vó que aqui já não está mais.
Pensei nos amigos do jardim de infância. E quando estes se foram, pensei nos do
primeiro fundamental. E quando foram estes a se afastaram, pensei nos da sétima
série, que eventualmente desapareceram também. Pensei nos amigos do ensino
médio, então. Na falta de contato com todos. Cheguei com o pensamento aos
amigos da faculdade. E soube que esses não serão para sempre, como nenhum dos
outros que achei que seriam foram. Pensei que há cinco anos eu estava no
primeiro ano do ensino médio, querendo fazer medicina e indignado por pesar
somente sessenta quilos. Pensei então que hoje curso o sexto período de direito
e peso quase cem quilos. Cinco anos atrás eu tinha quinze e hoje tenho vinte. Meu
irmão fazia jornalismo e hoje faz história. Meu pai trabalhava em um estado e
foi transferido pra outro pra depois ser transferido pro mesmo novamente para
então ir para outro para agora voltar ao estado em que estava no começo. Tudo
isso, muito mais, em uma colherada de gelatina. Segundos para pensar em uma
resposta. Soltei um “vish” baixinho. Meu pai me conhece. Esse vish, traduzido
direto do Joãomachadês significa “rapaz, sei lá”. Mas eu quis ir além do sei
lá. Encarei a gelatina. Encarei meu pai. A gelatina de novo. Fiz as contas, em
cinco anos provavelmente estarei formado. Mas isso é praticamente matemática.
Um semestre atrás do outro, um dia acaba. Mas que garantia eu tenho que
formarei? Que garantia tenho que acordarei amanhã? Minha avó ficou doente e
morreu em três meses. Meu avô morreu em um acidente de carro. Uma menina que
estudou comigo em 2008 teve um ataque cardíaco e morreu. Perdi um colega de
ensino médio para o câncer. Um amigo de faculdade para a violência urbana. O
que me garante que continuarão sendo os outros a morrerem e não eu? Eu posso
ter um emprego em cinco anos. Ou não. Posso estar de boa, casado, com dois
filhos, num apartamento na periferia. Ou posso estar ainda com meus pais sendo
tão inútil quanto me sinto ser atualmente.
Minha mente disparou em segundos. Pensaria em toda a minha
vida antes da gelatina tremer. Falei então, minha resposta. Disse que não sei.
Apenas. Ele não pareceu satisfeito, mas penso que entendeu. Mas eu não sei. Não
tenho como saber. Viver é sorte. Sair de casa em um carro todos os dias.
Estacionar em um setor movimentado. Voltar da faculdade em ruas desertas. Viver
em uma cidade cujo número de homicídios dispara na casa das dezenas por mês.
Sonhar com um emprego, quando já não é tão simples achar um estágio. Eu posso
ter metas. Querer isso ou aquilo. E só. Nada além disso. Por maior que sejam as
minhas motivações e os meus esforços, a minha vida não depende só de mim. E
essa pergunta, repentina, entre silêncio e gelatina, me assustou. Me caiu a
ficha, como dizem. Tenho pensado nisso o dia todo. Vários dias já. Minha vida
depende de inúmeros fatores que não cabem a mim. Meu resultado nesse mundo será
apenas a soma na qual sou só um dos termos.
Não sei onde estarei. Mas sei onde gostaria de estar. Não
sei como chegar, assim como a menina que sabia o que dizer, mas se perdia nas
travas da oratória. Quero o que todo mundo quer. Um salário legal, viagens,
família, prazer na vida. Felicidade. Talvez em cinco anos. Talvez nunca.
Não sei começar texto e não sei terminar.
É o bater da porta na cara, ou o descer suave das cortinas. É ser feliz em
tantos anos, ou olhar para trás e se arrepender. Buscando sempre a satisfação.
“Já ouvimos esta estória
Sabemos como acaba
Acontece quase tudo
Não muda quase nada
Já vimos este filme
Sabemos como acaba
Explodem quase tudo
Não sobra quase nada
Sair no meio da sessão
Pra ver
A cidade em chamas”
Então, só resta uma solução
Sair no meio da sessãoPra verA cidade em chamas”
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