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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

[Retrospectiva] Let It Be.

Já tem umas semanas que eu estou pensando nisso aqui. Todo fim de ano eu sou marcado em várias notas e textos de amigos e conhecidos. Retrospectivas, algumas correntes desejando um feliz ano novo. O de sempre. Eu não pretendo marcar ninguém aqui. Sempre me esqueço de alguém nessas horas, mas esquecer não quer dizer que eu não me lembre. Mas voltemos ao "foco".

Minha vó nasceu em Ipuã, no estado de São Paulo, em 26 de maio de 1927. 450 quilômetros da capital. Em algum ponto de sua infância, ela se mudou para Brodowski. 337 quilômetros da capital. Os mais ligados em arte sabem que cidade é essa. Ela me contava era conhecida de um tal "Candinho". Amigo de amigos, colegas. Mais velho que ela. Cândido Torquato Portinari. Candinho. Naturalidade ao falar, como se esquecesse de quem falava. Ou como se apenas não se importasse.

Em algum momento e por algum motivo que nunca ficou totalmente claro para mim, ela e sua família foram parar em Ituverava. 400 quilômetros de São Paulo, para outro lado totalmente diferente. Sem mais Candinho. Agora, a história que ela me contou era outra. A festa de recepção dos pracinhas da FEB, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Não me lembro se foi na própria cidade ou em alguma próxima. Mas lembro de ver ela contando sobre toda a preparação, toda a empolgação com o retorno dos soldados. Um conhecido/amigo dela foi para a guerra, se não me engano. Infelizmente não me lembro de todos os detalhes. Nem mesmo ela se lembrava, quando me contou isso. 

Minha vó votou em Vargas. Se bem me lembro de quando ela conversou comigo sobre isso, essa foi a primeira vez que ela votou. Mal sabia ela a mudança que estaria vindo para a história do país. Palavras dela. Em uma trombada por aí, nessa época, ela conheceu meu vô, de quem eu herdei o nome. Não sei datas exatas, locais ou nomes. Sei que se conheceram, e que minha vó nunca deixou de usar a aliança de casamento. 

Meus tios e minha tia nasceram, e por último, minha mãe. Ainda em São Paulo, tentavam ganhar dinheiro. Veio a ditadura, e, se isso influenciou a vida dela de alguma forma, ela nunca me falou. Parecia até, em alguns momentos, ao contar algumas histórias, alheia a este acontecimento. Sei que, entre as décadas de 60 e 70, eles decidiram vir para Goiás. Meus tios já grandes, minha mãe mal tinha saído das fraldas. Em um evento que também nunca me foi muito explicado, e que eu também, até por um pouco de respeito, nunca perguntei demais sobre, meu avô morreu. Minha mãe tinha uns 6 anos, minha vó uns quarenta e poucos. E de lá ela se virou. Pulou de cidade em cidade, buscando dinheiro, sucesso nas lavouras. Goiatuba, Montes Claros de Goiás, Mato Grosso. Finalmente, Goiânia. Daí pra frente, a história não se diferencia muito de muitas outras histórias urbanas. Uma casa, daí para um apartamento, para uma velhice na periferia. Não digo nada que me contaram. Nenhum boato. Tudo eu ouvi dela, nas várias vezes em que fui em sua casa, vizinha à minha, e ouvia o que ela tinha para dizer. Via ela contar histórias e chorar ao lembrar do João Machado, e ficar brava ao me ouvir dizer que ela tinha que "se aprumar pros velhinhos".

Uma vez, entraram uns moleques na casa dela, num momento de descuido com o portão aberto, e levaram a bolsa da minha tia. Minha vó correu atrás de um deles e o arrastou de volta para a porta de sua casa pela orelha. Jogou o moleque no chão e saiu puxando. Ela já beirava os oitenta anos, quando isso aconteceu. Quando eu era pequeno, eu achava que nada poderia parar aquela mulher, que ela estaria ali pra sempre. Ilusão infantil. Ela já não está mais. Sempre muito orgulhosa pelo meu nome, ela chorava ao ver qualquer diploma de curso de inglês. "Ah, se seu vô visse isso. Não teria coisa melhor no mundo pra ele". Quando entrei na faculdade então, foi a primeira a me chamar de "Doutor" João Machado. Sempre com um sorriso e com a aliança no dedo.

Não é por minha vó ter falecido que irei dizer só coisas boas. Realmente, ela era uma pessoa difícil, quase impossível quando queria. Pirracenta, e até birrenta, em alguns momentos ou com algumas pessoas. Mas nunca me faltou amor, por parte dela. Infelizmente, 2013 será para mim o ano em que ela se foi.

Quando ela já estava bem ruim, já bem abatida pelo câncer, foi anunciado o show do Paul McCartney em Goiânia. Final de fevereiro, começo de março, se bem me lembro. Na época, era uma correria louca, para levar em hospital, trazer, buscar exame. Só posso imaginar o quanto foi difícil para minha mãe acompanhar isso tudo. Meu irmão e eu, fãs dos Beatles, compramos nossos ingressos assim que foi liberada a venda. Nossa vida seguia, em paralelo, enquanto minha avó piorava. Já tínhamos chegado a um ponto no qual minha vó, a pessoa que cuidava de mim quando minha mãe saía, que contou de Vargas e dos pracinhas, que atravessou o Centro-Oeste para suprir sua família, não estava ali mais. Ela já tinha morrido. É algo horrível de se dizer, mas quem já passou por uma situação assim sabe o que quero dizer. Você deixa de esperar o impossível, e já passa a desejar apenas um descanso para a pessoa.

Eventualmente, ela faleceu. Seu desejo sempre foi de ser enterrada em Ituverava, ao lado do meu vô. E assim foi feito. Duas semanas depois, era o show. E eu passava dias, horas, pensando no "sentido da vida". Naquele dia, era minha vó. Amanhã, seriam meus tios, meus pais, meus irmãos. Eventualmente, eu ficaria sozinho, ou deixaria alguém sozinho. Eu pensei muito nisso. Talvez até mais do que deveria. Então chegou o show. 06 de maio de 2013. Vinte dias antes do aniversário dela, e vinte dias depois de sua morte. Até isso me incomodava, na época. Essa "matemática" sinistra da vida.

Fomos para o show, eu e meu irmão. Ele bem mais abalado que eu. O tempo que eu passei com ela foi mínimo, se comparado ao que ele passou. Quase toda a infância dele foi com ela presente. Mas não falávamos disso. Mas se sentia isso no ar. Passamos umas seis horas na fila, queríamos os melhores lugares. Seis horas remoendo tudo isso na minha cabeça. Entramos, o show começou, Sir Paul cantava seus sucessos. Era uma boa noite, uma das melhores do ano, talvez até de nossas vidas.



Até que Paul cantou Let It Be. E desde então, essa música não foi mais a mesma para nós dois. Veja bem, eu tinha acabado de perder alguém que era tão parte de mim quanto meu irmão ou meus pais, e chegava esse inglêsinho mequetrefe cantando "Deixe ser"? E, a partir daquele momento, eu tenho pensado nessa música. Ouvi ela várias vezes durante o ano, talvez tenha sido a música que mais ouvi. E cheguei a uma conclusão. Paul não cantou Let It Be como "deixe ser". Não foi isso que ele, que os Beatles quiseram dizer. Paul cantou Let It Be. "Aceite que é". Pode parecer desprezível, mas há uma diferença aí. Não é se conformar com o que acontece e viver triste pensando no que nunca será. É se preparar para o que virá e saber que, quando passar, você terá aproveitado. É viver sem arrependimentos. É aceitar que o que foi não volta, mas ainda assim reconhecer a singularidade de cada momento. Aceitar que a vida é cruel e que as pessoas que você ama morrerão. Aceitar que o mundo é injusto, que o sofrimento existe e está ali, em cada esquina, esperando para te derrubar. Mas que existem coisas tão belas quanto o amor de vó, pronto para sentar ali, ao seu lado, por horas, contando histórias do século passado.

E, finalmente, chegando onde eu queria. Essa é minha retrospectiva de 2013, e meu desejo para 2014. Viva bem. Busque sempre o melhor. Seja uma pessoa melhor, se relacione melhor. Seja melhor. Não ceda espaço para o arrependimento. Não se conforme. Uma hora tudo isso vai acabar. Aproveite enquanto pode. Abrace hoje quem você quiser abraçar. Não guarde o hoje para amanhã. É clichê, mas um dia o amanhã não chegará.


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