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terça-feira, 21 de maio de 2013

[Texto] Centro/Garavelo. Seis da tarde.


   Eu falei pra minha mãe no dia que comprei essa calça. Esse bolso é fundo demais. Cadê minha carteira? Sei que está ali, só não alcanço ela. Uma moça entra no ônibus. A moça. Ela insinua a passagem, saio do caminho, ela roda a catraca. Seu cabelo passa quase em meu nariz. Passou quase em minha alma. Um cheiro que não foi embora. Ficou no ar, ficou em meu nariz. 

   Ela sumiu no ônibus cheio. Peguei a carteira, rodei a catraca, fui pro mesmo lugar que sempre fico. Tentei achar ela, não achei. Lembrando de seu cheiro, tentando lembrar de seu rosto. Liguei minhas músicas, liguei minhas paranóias, liguei outro mundo. Gente vai, gente vem. Não lembrava mais que cheiro era. Seria cheiro de coberta? Cheiro de perfume, cheiro de xampu? Não lembrava mais. 

   O ônibus balançou, e em meio aos outros, eu vi seu rosto. Sentada, inerte, aérea. Fones nos ouvidos, olhos nas janelas. Agora eu já não sabia se era mesmo perfume ou se eu imaginei um cheiro. Tão isolada do resto, tão solta. O que estaria ouvindo? Pra onde estaria olhando? O ônibus balançou, e eu perdi seu rosto. 

   Alguns pontos se passaram, algumas várias poucas músicas. Quantas,quais, não me lembro. Talvez nem faria diferença se não passassem. Eram quase uma trilha sonora de um momento que parecia tão perdido. Pensava em muitas coisas. “Você vem sempre aqui ?”, ou “ essa passagem é sua?”. “Você já assistiu Madagascar?" ou qualquer outro desenho. Filmes, séries, gibis”. Vontade de ter toda a habilidade social que falta às vezes. Quase sempre.

   O ônibus tremeu, e em meio à tantos outros, eu vi seu rosto. Mesma expressão, mesmos fones, mesmos olhos. Olhava para o celular agora. Mensagens, twitter, sabe-se lá o que era. Me peguei olhando para o cabelo novamente. Tentava lembrar que cheiro era. Tinha sido algo tão diferente, tão destacado dos cheiros da cidade, do ônibus, da mesmice de todo dia. Alguém me pergunta as horas. Preciso ouvir três, quatro vezes a pergunta, para me soltar. Seis e cinquenta. Obrigado. Me virei novamente. Os passageiros mudaram e eu perdi seu rosto.

   Eu falei pro meu pai no dia que comprei essa calça. Esse bolso é muito fundo. Não alcançava meu celular. Desisti dessa vez, deixei como estava. Olhei se a carteira ainda estava no outro bolso. Procurei as chaves na mochila. Tudo no lugar. Olhei pro meio do ônibus, procurei um rosto. Procurei em vão.
   
   O ônibus freiou, e em meio à tanta gente, ela viu meu rosto. Meio segundo para pensar em mil reações. Não tinha ido até ali pra virar o rosto e fingir não olhar. Um sorriso, meio com medo. Um sorriso de volta. O ônibus arrancou, e nossos olhos se perderam.

   Um apito de descida na próxima parada. Me perguntaram as horas de novo. Só fui lembrar de responder quando estava quase em casa. Seria ela a descer? O ônibus freiou. Não a vi no banco de antes. Vi seu cabelo de relance, passando pela porta. Ela desceu. Sinal fechado, ônibus ainda parado. Ela saiu por trás do ônibus. Olhei pela janela. Ela me viu, eu vi ela. Um sorriso, e um tchauzinho. Nome, telefone, endereço, email, facebook, qualquer coisa, tanta coisa. Nada. Sorri de volta. Em meio à tantos carros, tantas motos, tantos pensamentos e tantas coisas, a perdi de vista. O sinal abriu, o ônibus acelerou, e ela ficou. Eu fui. Ou ela foi e eu fiquei. 

   Até qualquer dia desses, em outro encontro acidental. Até nunca mais, moça cheirosa.

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